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53º OsteRio

27 de fevereiro de 2012 - Osteria dell’Angolo

Por Julia Michaels em OsteRio

Através da história, o Rio de Janeiro contou com um grande número de cronistas craques: João do Rio, Machado de Assis, Sérgio Porto. E, como lembrou José Luiz Alqueres, hoje em dia há cronistas de todo estirpe, como o autor de novelas Manoel Carlos, cronista do Leblon. João do Rio, diz Alqueres, fazia sociologia urbana. O termo cronista vem da palavra grega cronos. Cronista registra sua época, sobre as mais variadas facetas.

Os cronistas têm as suas idiossincrasias. O sergipano Ancelmo Gois, por exemplo, como lembrou Lula Vieira, bebe café com leite enquanto come acarajé. Lula observou o hábito numa viagem de publicitários e jornalistas patrocinada pela Coca-Cola, que os dois fizeram juntos na juventude, pelo Brasil.

Por sua vez, Cora Ronai já viajou com capivara na mala. Quando o saudoso editor Rodolfo Fernandes a chamou para cobrir a Copa do Mundo de 2002, na Alemanha, foi o jeito (remetendo a uma capivara de verdade que Cora espiara nas margens da Lagoa).

"As pessoas abriam o jornal para saber o que a capivara achava da Copa," lembrou o Lula.

"Eu nunca tinha visto um jogo de futebol, era a única pessoa na redação que não conhecia um estádio, com exceção de um show do Paul McCartney no Maracanã," Cora contou. A pauta não era o futebol propriamente dito. Mas as crônicas diárias tinham que ter foto. E aí entrou a capivara— para ocupar o primeiro plano, pois Cora se diz encabulada para fotografar pessoas. Prefere bichos e paisagens.

"A capivara saiu daqui com enxoval completo, camiseta verde e amarela. Minha irmã tricotou uma echarpe. Ela foi uma torcedora, tinha brinco, perolas, era mais bem vestida do que eu na Copa," lembra Cora. "Então a capivara começou a contar as histórias, a fazer entrevista, e foi entrevistada. Os torcedores ficaram indignados," acrescentou. "Escreviam para dizer ’essa mulher não entende nada de futebol’."

Provavelmente Cora foi a primeira cronista a usar fotografias como ilustração. Ela começou a carreira como fotógrafa e continuou interessada no meio, mesmo depois de mudar para texto. Tradicionalmente as crônicas eram ilustradas por artistas que trabalhavam na redação. Mas Cora ganhou a coluna bem quando a câmera digital surgiu.
"Foto é difícil," ela confessa. "Quando falta ideia, boto foto de gata. Metade reclama, metade adora!"

Enquanto Cora ia botando fotos, Ancelmo foi removendo-as. Ele assumiu a coluna que havia sido de Ricardo Boechat, no Globo.

"Queria tirar as fotos das socialites, e botar o Rio," contou o Ancelmo. "Eu queria dedicar a última parte de minha carreira ao Rio. O Rio me recebeu em 1970, o Rio é a minha praia, com suas mazelas e belezas. Talvez o Rio de Janeiro seja a única grande cidade do mundo que não tem um bairro chinês," ele completou, para a surpresa da plateia. O Rio de fato não abriga bairros étnicos, como é o caso de tantas cidades.

"Quando cheguei ao Rio," Ancelmo prosseguiu, "eu era repórter de economia. Quase não tinha Bolsa de São Paulo, era a Bolsa do Rio. A Bolsa de São Paulo era menos de 5% da Bolsa do Rio. Sulamerica, Atlântica Boavista, era tudo aqui. Os bancos eram quase todos aqui. Nacional, Unibanco. Eu vi o Rio ir embora. O Rio perdeu muito. E perdeu um negócio que tem um valor. O Rio era o lugar preferido das pessoas mais interessantes de Minas Gerais. Carlos Drummond, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Pedro Nava, o Hélio, o Rio agregava essas pessoas. João Gilberto, perdeu isso, essa coisa. Darcy Ribeiro. A gente acabou ficando mais brega."

Mas a novidade agora, diz ele, é a virada. "O melhor ano desses meus quarenta anos foi o ano passado," afirmou. "E pode ser esse ano também, tomara que seja." Assinalou que o movimento para livrar o Carnaval dos bicheiros mostra o caminho do futuro, de relações mais transparentes e instituições mais fortes.

Na hora de apresentar o cardápio especial do OsteRio, Luciano, sócio da Osteria dell’Angolo, agradeceu os cronistas pelo trabalho deles, dizendo que a crônica é como uma boa sobremesa. "Sem a crônica o jornal perderia a graça," comentou.

Entre perguntas e observações, houve um consenso de que a camaradagem carioca é especial. A advogada -economista Helena Landau perguntou ao Ancelmo se agora estaria de volta o carioca que ajuda, que levanta no ônibus e que conversa com todos. "O estresse teve muito a ver com a violência," opinou ele. "No Rio, o varejo de cocaína tinha o fuzil ao lado. Na Colômbia, era no atacado, não no varejo."

Cora achou impossível o carioca deixar de falar com os outros; acima de tudo ele sacaneia com primor, acrescentou Ancelmo. "O desembargador que mora na cobertura, mas que é Vascaino, é sacaneado pelo porteiro, que é Fluminense. Hoje é isso, você vai nas bancas de jornais, é um sacanear o outro. Sem pensar em classes sociais."
O carioca fala carioquês, de acordo com Lula. Ele lembrou da Espanha pos-Franco, onde morou. De repente descobriu-se que os catalães falavam catalã, idioma proibido pelo ditador. "A possibilidade de a gente ser a gente mesma está aí," disse.

Cora criticou o carioquês em um quesito. "Ouço palavrões como vírgulas ou pontos de exclamação," reclamou. "Eu gosto de sair de noite, de bicicleta. Eu não gosto do tom. Acontece em todos os lugares."

Alba Zaluar, antropóloga , lembrou que a cordialidade carioca vem do subúrbio, da Zona Norte.

José Arnaldo Rossi quis que o ministro Marcilio Marques Moreira falasse sobre o fato de que o carro não combina com a cidade.

E Marcílio falou. "A cordialidade continua sim", afirmou. "Mas o Rio foi maltratado." A transferência da capital teve toda uma metodologia para proteger a cidade, mas não foi cumprida. "O transporte não foi resolvido," concluiu. "Não podemos ficar complacentes, temos que continuar indignantes".

Rafael, estudante do movimento pro-participação Meu Rio, perguntou qual presente os cronistas dariam para o futuro do Rio de Janeiro. Cora disse que daria justamente um sistema de transportes eficiente e um jornal para concorrer com O Globo, apesar de gostar muito dele.

Jeronymo Machado, produtor de shows, lembrou que os cariocas foram aceitando a gradativa degeneração da cidade. Ancelmo concordou e disse que a ilegalidade está no centro de muitos problemas. "O pessoal da SuperVia me contou essa semana que pelo menos 40 mil pessoas por dia entram no trem sem pagar," ele contou. "A grande bandeira do Rio é o estado de direito".

É um tema clássico, lembrou Alqueres entre aplausos, acrescentando que os impostos altos, a burocracia e a inflexibilidade das leis contribuem para isso. "É um grande desafio, bom para um futuro debate," comentou.

Marcio Fortes, ex ministro e deputado federal, culpou a imprensa pela decadência do Rio de Janeiro, após a última fase de grandes investimentos, nos anos 1970, durante o milagre brasileiro. Leonel Brizola era governador, e assustava muita gente. "[...] para castigar o Brizola [a imprensa] castigou o Rio de Janeiro, com aquele negócio do arrastão, a imagem da desordem. A zona sul reagiu com rancor à linha 416, a primeira linha de ônibus a passar pelo túnel Rebouças trazendo suburbanos para a praia na zona sul." Perdemos aquele momento auspicioso, disse ele.

Fortes conclamou a imprensa presente a fazer sua parte para que isso não aconteça novamente. Mas Ancelmo, com grande vivência jornalística, não aceitou o desafio. "Essa super força da imprensa não existe," ele falou, lembrando que a imprensa do Rio "perdeu todas as eleições, a não ser a última." A realidade vale mais do que a imprensa, ele concluiu.

Tomara que essa nossa realidade-da virada-continue por um bom tempo e que saibamos aproveitar de nosso momento auspicioso.