Eventos

Fome e pobreza, uma relação complexa

16 de março de 2011 - Rio de Janeiro - RJ

Seminário no Iets evidencia as dificuldades de se medir a insegurança alimentar da população e transformar dados em diagnóstico e orientação de políticas públicas Rosa Lima, 16 de março de 2011

Questão central dentro das preocupações públicas, a desnutrição já vem de longa data fazendo uso de pesquisas domiciliares como instrumento de diagnóstico das condições alimentares da população brasileira. Se, depois do Estudo Nacional da Despesa Familiar (Endef), as pesquisas até recentemente tinham como foco a despesa das famílias com a compra de alimentos, a novidade hoje é a introdução de investigação subjetiva sobre o tema. Trata-se de medir a segurança alimentar do ponto de vista das famílias através de um conjunto de perguntas de caráter subjetivo, de forma a captar a percepção e o grau de satisfação das pessoas quanto ao seu consumo alimentar. Como transformar isso em diagnóstico e encaminhamento para a política social, porém, ainda é a grande questão que se coloca para os estudiosos do tema.

Para discutir as diferentes abordagens do consumo alimentar nas pesquisas domiciliares, o Iets promoveu um seminário e recebeu, na tarde de 23 de fevereiro último, dois grandes especialistas para apresentá-lo: o estatístico Maurício Vasconcellos, considerado a "memória viva" das pesquisas de orçamento familiar, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas e um dos mais antigos pesquisadores em atividade na área, e a nutróloga Rosana Salles-Costa, professora do Instituto de Nutrição Josué de Castro, da UFRJ, e uma das maiores conhecedoras da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar.

Num encontro de quase três horas, que reuniu pesquisadores do Iets, como Sônia Rocha, Simon Schwartzman, Maurício Blanco e Marcelo Pessoa, e também do IBGE, como Márcia Quintslr, muitas questões vieram à tona, deixando claro que são bastante complexas as relações entre fome e pobreza. E que a coleta de dados relativos à compra de alimentos, por si só, não é suficiente para delimitar linhas de pobreza e de indigência, não produz estimativas acuradas do consumo de alimentos nem serve para balizar políticas nutricionais.

Renda x nutrição

"É difícil se medir pobreza pela falta de capacidade das pessoas de comprarem alimentos. Associar renda com nutrição é tratar de questões muito distintas. Existe um problema que é o da renda mínima para consumo de alimentos, e existe um outro problema, do campo da nutrição, que são os desvios alimentares, por exemplo. São áreas, portanto, que requerem políticas distintas", disse o sociólogo Simon Schwartzman.

Foi também nessa linha que falou Maurício Vasconcellos. Ele abriu sua exposição falando da evolução da nutrição como ciência, que teve início no século 19, com Rubner, e ganhou corpo com os estudos de seu discípulo, Adwater, o primeiro a medir os nutrientes dos alimentos e comparar com os hoje chamados requerimentos nutricionais.

Maurício chamou atenção para um problema que se coloca de antemão para as políticas públicas: enquanto a nutrição trabalha com base em inquérito individual, a partir do registro do que uma pessoa consumiu como alimento num determinado período, o planejamento nutricional é familiar. "Isso de cara nos coloca uma limitação. Não existe forma de avaliação nutricional da família", disse o estatístico.

Ele fez um histórico da evolução das pesquisas sobre a situação nutricional da população brasileira - que começou ainda nos anos 60, na FGV, seguindo o modelo americano que nasce na saúde e busca o orçamento para explicar a situação nutricional, sofisticou-se com o Endef, nos anos 70, e com a Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição, em 1989, até a Pesquisa de Padrão de Vida, realizada em 97, pelo IBGE, que mostram o baixo peso caindo e o sobrepeso e os desvios alimentares aumentando.

"Essas pesquisas revelaram inicialmente uma melhora no estado nutricional da população e evidenciaram o processo de transição nutricional, quando começamos a somar ao problema da subnutrição o sobrepeso e, o mais grave, o problema da desnutrição entre os obesos".

Segundo o estatístico, apesar da importância dos fatores econômicos, o planejamento nacional permitiu e até incentivou grandes transformações no padrão alimentar da população, e ainda agravou os problemas nutricionais, pois não eliminou a fome e introduziu a obesidade, com todas as suas consequências para a saúde e para os custos do sistema público de saúde. "A determinação de linhas absolutas de pobreza, com base no consumo observado, é hoje um problema que busca uma solução", disse Maurício Vasconcellos.

Com ele concordou a economista Sônia Rocha, que já em 1997 propôs abandonar as cestas básicas de bens definidas de forma normativa para se delimitar linhas de pobreza e indigência. "Cestas normativas podem até ser nutricionalmente adequadas, mas não respeitam os padrões de consumo das famílias. As escolhas não são ótimas", argumentou a pesquisadora.

Para Maurício, o problema está em que na visão econômica, o consumo alimentar é medido pela compra; enquanto na nutrição, o consumo é medido pela ingestão. "A lógica da compra é uma, da nutrição é outra. Porque as pessoas comem o que mata a fome, é barato, prático ou dá prazer, não necessariamente o que nutre. Então, a grande pergunta é: seria a compra de alimentos num determinado período uma boa proxy da ingestão? Há ainda o problema da alimentação fora de casa, que é um padrão que está mudando drasticamente", ponderou.

Para Márcia Quintslr, responsável pelas pesquisas domiciliares no IBGE (Pnad, PME, e POF, dentre outras), não existe, por parte dos pesquisadores, nenhuma expectativa de que a lógica da compra de alimentos seja coincidente com a lógica da ingestão. "Mas, na impossibilidade de investigação da ingestão, esse método tem a vantagem de mostrar a evolução no padrão de compra, em termos de comportamento. E traz indicativos interessantes do tipo de alimento que as famílias estão comprando ao longo do tempo, como o aumento dos produtos industrializados, por exemplo", argumentou.

Ela chamou atenção ainda para o fato de que há demandas e políticas sobre o tema em diversos órgãos da administração pública federal. É o caso da Coordenação Geral de Alimentação e Nutrição, do Ministério da Saúde, que coordena pesquisas com recursos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Outra investigação é o registro alimentar na Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) e a pesquisa de Antropometria. Também o Ministério do Desenvolvimento Social trata do tema a partir da Secretaria de Segurança Alimentar. "A demanda deles já foi a questão da escala alimentar colocada na Pnad", revelou Márcia. Mas, segundo ela, a área ainda carece de um planejamento integrado. "Para isso, teria que passar por muitos ministérios, como Agricultura, Pesca, Educação e outros".

Ferramenta confiável

Trabalhando com o tema da segurança alimentar desde 2004, a professora Rosana Salles-Costa fez uma detalhada explanação sobre o conceito e suas dimensões e falou da validade da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar como uma importante ferramenta de política pública.

De acordo com ela, a segurança alimentar e nutricional envolve uma ideia ampla que engloba bem-estar físico, mental e social e qualidade de vida. O conceito articula duas dimensões: a alimentar, relativa a produção, comercialização e consumo de alimentos; e a nutricional, que diz respeito à utilização do alimento pelo organismo e sua relação com a saúde.

Nesse contexto, explicou Rosana, surge a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), adaptada da escala americana e validada para o Brasil em 2004. "Trata-se de um método de diagnóstico rápido da insegurança alimentar e uma ferramenta importante de política pública, que tem sido refinada a cada ano de modo a se chegar a um instrumento cada vez mais confiável do ponto de vista populacional".

Segundo a nutróloga, a concepção que subsidia essa escala se refere mais à escassez alimentar e menos ao conceito de segurança alimentar e nutricional de forma mais ampla. "A Ebia possibilita uma abordagem de insegurança alimentar capaz de identificar situações prévias de privação vividas pelas famílias antes que se instalem quadros de desnutrição que já expressem um percurso mais crônico de fome", explicou Rosana.

A escala é montada a partir das respostas a 15 perguntas sobre a percepção das famílias acerca do consumo alimentar nos três meses anteriores à pesquisa. "As perguntas direcionam-se, fundamentalmente, para problemas de acesso ao alimento ou para dificuldades da família em manter um perfil próprio de consumo alimentar impostas por tais problemas", disse. O entrevistado é sempre a pessoa responsável pela compra dos alimentos no domicílio.

O primeiro bloco de perguntas refere-se à relação entre a compra de alimentos e o dinheiro disponível para esse fim numa determinada família. No segundo bloco avaliam-se famílias compostas apenas de adultos, e no terceiro, famílias com crianças e adolescentes também.

Para cada resposta positiva a uma pergunta atribui-se um ponto na escala. O número de pontos indica se a família está em segurança alimentar, em insegurança leve, moderada ou grave. "A insegurança leve aparece quando houve preocupação de que a comida acabasse antes que a família tivesse dinheiro para comprar mais. A insegurança é moderada quando se observa o alimento já faltando em quantidade e qualidade para a família, e é grave quando essa falta é consistente", explicou Rosana Salles-Costa.

Depois de citar alguns estudos que utilizaram a escala - a Pnad (2004/2009), do IBGE; a pesquisa das Repercussões do Programa Bolsa-Família na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiadas, do Ibase; o Relatório Anual das Desigualdades Raciais (2007/2008) e a pesquisa sobre saúde e segurança alimentar no município do Duque de Caxias, a professora concluiu que ela é um instrumento útil e confiável de análise da situação de segurança alimentar das famílias.

"Os resultados são bastante consistentes", disse Rosana. "O uso da escala permite que você consiga dialogar com outras dimensões como desigualdade de renda, questões raciais, violência de gênero, saneamento básico, etc. Só não estou muito convencida dos pontos de corte. A diferença entre insegurança leve, moderada e grave é muito sutil. Essa, para mim, é a grande questão para se pensar", concluiu.